O general João Lourenço, Presidente da República, num discurso escrito a oito mãos (às suas juntou as do Presidente do MPLA, as do Titular do Poder Executiva e as do Comandante-em-Chefe das Forças Armadas) fez hoje, na Assembleia Nacional, a radiografia do estado da (sua) nação, mostrando a todos que nem Deus teria feito melhor. Os seus súbditos aplaudiram. Os 20 milhões de angolanos pobres não o fizeram porque estavam ocupados a procurar comida nas lixeiras…
As autoridades de justiça angolanas recuperaram, apreenderam e arrestaram activos avaliados em cerca de 3.500 milhões de euros ao longo deste ano, segundo números avançados pelo Presidente da República e confirmados por dois outros expoentes máximos da democracia e do Estado de Direito, dois pilares criados e patenteados, o Presidente do MPLA e o Titular do Poder Executivo.
João Lourenço (o Presidente do reino), que falava hoje na abertura do ano parlamentar, frisou que o combate à corrupção e o processo de recuperação de activos continuam no topo da agenda do Estado e referiu números para comprovar esta prioridade que, como se sabe, não tiveram (nem terão) direito a contraditório, desde logo porque é crime contra o Estado pôr em dúvida a verdade oficial quando – como é o caso – ela é dita pelo mais alto magistrado do reino, além de dilecto e indefectível seguidor do único herói nacional, o assassino e genocida António Agostinho Neto.
Segundo o “Deus” do executivo angolano, em 2023 foram recuperados dez imóveis avaliados em cerca de 1.700 milhões de dólares (1.600 milhões de euros), participações sociais avaliadas em 800 milhões de dólares (760 milhões de euros) e recursos financeiros no montante de mais de 133 milhões de dólares (126 milhões de euros).
Também este ano, foram apreendidos e/ou arrestados, em Angola ou no estrangeiro, imóveis, participações sociais e valores monetários no valor de mil milhões de dólares (cerca de 950 milhões de euros), disse o chefe de Estado, prometendo, para breve, “mais notícias”.
Ainda sobre o tema da justiça, João Lourenço adiantou que a Procuradoria-Geral da República (um órgão cuja credibilidade, idoneidade e honorabilidade está acima de qualquer dúvida no seio dos dirigentes do MPLA) tem actualmente 635 magistrados, ainda insuficientes para as múltiplas tarefas existentes, estando em tramitação neste órgão cerca de 170 mil processo-crime em instrução preparatória, dos quais mais de 115 mil já foram concluídos.
Há ainda 267 processos instaurados, 122 inquérito realizados para averiguar indícios da prática de crimes económico-financeiros, 109 processos deram entrada nos tribunais de jurisdição comum, dos quais 51 no Tribunal Supremo, outro órgão cuja credibilidade, idoneidade e honorabilidade está igualmente acima de qualquer dúvida no seio dos dirigentes do MPLA.
A luta contra a corrupção tem sido apresentada como uma bandeira do general João Lourenço (que em tempos garantiu aos angolanos que viu roubar, participou nos roubos e beneficiou dos roubos mas que não era ladrão) desde que este assumiu o cargo de Presidente da República, sucedendo a José Eduardo dos Santos, do qual foi domesticado ministro da Defesa, que liderou o país durante 38 anos.
João Lourenço, que iniciou o seu segundo mandato em 2022, garantiu que ricos e poderosos (que não sejam seus amigos, obviamente) não iriam escapar às malhas da justiça e declarou o fim da impunidade, tendo surgido nos últimos anos vários casos judiciais, muitos dos quais visando familiares do ex-Presidente ou seus colaboradores próximos.
João Lourenço garantiu também que o Governo “há muito que cumpriu a sua parte” no processo de institucionalização das autarquias, uma situação que se “arrasta há anos” por se procurar “o maior consenso possível”, e que passa por levar a Oposição a concordar com a única estratégia válida que é concebida pelo MPLA, discutida pelo MPLA e que permitirá ao MPLA continuar a ser dono do reino.
Sem falar em datas para a conclusão do processo, o general João Lourenço abordou o tema durante a sua mensagem sobre o estado da reino (eufemisticamente chamado de Nação), hoje, na abertura do ano parlamentar, salientando que fez a sua parte com a elaboração e apresentação à Assembleia Nacional das propostas de leis do chamado “pacote autárquico”.
A proposta de lei sobre a institucionalização das autarquias é o único diploma do pacote legislativo autárquico que ainda não foi aprovado, estando por agendar desde 2020.
O MPLA, partido no poder há 48 anos e que conta com 124 dos 220 deputados da Assembleia Nacional, defende o princípio do gradualismo na implementação das autarquias, enquanto a UNITA, maior partido da oposição que o MPLA ainda permite, com 90 deputados, quer a realização de eleições autárquicas em todo o território nacional em simultâneo.
“Sabemos que se está à procura do maior consenso possível à volta desta matéria de interesse nacional, situação que, como sabemos, se arrasta há anos embora para aprovação dessas leis não se exija maioria qualificada de dois terços dos votos dos deputados, bastando para tal que acolham os votos de uma maioria absoluta”, disse o Presidente, responsabilizando indirectamente mas ao estilo rabo escondido com gato de fora, a Assembleia Nacional (sua sucursal) pelo não avanço do processo.
João Lourenço apontou, por outro lado, as reformas em curso na administração local do Estado “para reforçar a sua organização e capacidade institucional” e para promover “uma governação cada vez mais participativa e que esteja preparada para os desafios da descentralização administrativa, resultante do processo de institucionalização das autarquias”.
Segundo indicou, estão concluídas as primeiras duas estruturas administrativas e autárquicas e mais seis estão em construção, assim como 34 complexos residenciais administrativos para facilitar a colocação de quadros nos municípios e 32 assembleias municipais.
Estão também em fase final, os trabalhos para a alteração da divisão político-administrativa que dará origem a mais duas províncias angolanas, além das actuais 18, resultantes da subdivisão do Moxico e o Cuando Cubango, as duas maiores do país.
“Com este exercício teremos o poder administrativo mais próximo dos cidadãos e mais capaz de abordar a resolução dos problemas das comunidades”, frisou o chefe do executivo angolano.
O Presidente falou também sobre os municípios que “exercem hoje mais competências” e estão a arrecadar mais receitas, o que incentiva a transferir cada vez mais competências da administração central para a administração local.
“Mantemos contudo o compromisso da institucionalização do poder autárquico nos moldes em que vier a ser negociado pelos deputados na Assembleia Nacional”, reiterou.
Noutra frente da sua anual apresentação de candidatura ao Nobel da propaganda, João Lourenço admitiu uma redução da carga fiscal, nomeadamente redução do IVA em alguns produtos, e salientou que vai continuar com o processo de retirada de subsídios aos combustíveis “de forma suave e gradual”.
“Estamos a trabalhar para simplificar e aliviar a carga fiscal, sempre que possível”, disse o chefe de Estado, admitindo a possibilidade de voltar a baixar o IVA, depois de ter sido anunciada a redução de 14% para 7% nos bens alimentares.
“No quadro do debate parlamentar em curso, manifesto a nossa abertura para que em relação a alguns produtos de amplo consumo da nossa população possa ser ponderada uma redução maior do que a proposta, desde que tal não comprometa o exercício do equilíbrio das contas públicas e a capacidade do Estado em continuar a honrar os seus compromissos”, afirmou, sob fortes aplausos da bancada do MPLA, partido do poder há 48 anos.
No que diz respeito ao processo de retirada dos subsídios aos combustíveis, que “eram subvencionados há décadas, chegando aos consumidores a preços muito abaixo dos preços de produção e compra quando são importados”, salientou que a situação era “incomportável para qualquer economia”.
“O ajuste estrutural das nossas finanças públicas levou também à adopção de medidas corajosas sempre que necessário, mesmo que as mesmas possam ser vistas em determinado momento como menos populares”, disse, garantindo que “o Executivo continuará a fazer de forma gradual os ajustes necessários até que se aproximarem dos valores reais de mercado”.
O Presidente (não nominalmente eleito) mostrou-se seguro dos benefícios desta medida, a nível das finanças públicas e promoção de maior justiça social, e assegurou que o processo vai decorrer “de modo suave e gradual” com medidas de mitigação e estímulo à actividade económica.
Falou ainda sobre os efeitos da pandemia nos anos de 2020 e 2021, bem como as pressões inflacionárias advindas da guerra na Ucrânia, com especial impacto nos países mais vulneráveis a choques externos.
“Como consequência disso a avaliação recente da economia nacional permite antever uma desaceleração da actividade económica”, que será compensada com crescimento esperado do sector não petrolífero de cerca 3,5% em virtude de medidas de estímulo à economia, com vista a aumentar a produção interna, declarou o chefe de Estado.
Um “arsenal” sobre o estado do reino
O Presidente da República, João Lourenço, tal como fariam com certeza os seus camaradas Presidente do MPLA e Titular do Poder Executivo, na sua mensagem sobre o estado do seu reino (ele chama-lhe Nação), aplaudida pelos cidadãos neo-bajuladores e restante acólitos, mostrou o que diz ter feito e reconheceu com a humildade que (não) tem que há muito por fazer.
A diversificação da economia é, sem dúvida, uma das questões que não está, nunca esteve, de forma efectiva no centro das preocupações das autoridades, pelo que não foi de admirar o facto de o assunto ser abordado pelo Presidente da República, que é, nos termos da Constituição, Titular do Poder Executivo (para além de Presidente do MPLA) com (in)competência para “dirigir a política geral de governação do país e da Administração Pública”.
A abertura do ano parlamentar suscita geralmente a atenção dos poucos cidadãos que ainda julgam que Angola é um Estado de Direito, porque ela é marcada pela mensagem do Presidente da República sobre o estado da vida nacional e sobre as políticas preconizadas para a promoção do bem-estar dos angolanos de primeira e para o desenvolvimento do país que, desde 1975, em vez de produzir riqueza produz… ricos.
Vivem os angolanos (que não os seus senhores) um período de crise económica e financeira, pelo que foi inevitável que o Presidente da República dedicasse partes do seu discurso a uma questão que pode continuar a engordar os que gravitam na gamela do poder.
A diversificação da economia é uma questão que as autoridades do MPLA levam muito a sério, até porque ela é um meio para se tornarem ainda mais ricos. Estão, aliás, tarimbados neste tema porque o usam há 48 anos.
O Presidente entende (e se ele entende nem “Deus” contraria) o objectivo a que o país aspira é o de pertencer até 2025 ao Grupo dos Países de Desenvolvimento Humano Elevado. Por essa razão, o combate à pobreza é, de facto, uma prioridade do Governo, e tem sido positivo o ritmo da sua redução. Mas é importante que haja um reforço e alargamento das medidas que, directa ou indirectamente, podem contribuir ainda para a sua maior redução.
Assim, o Governo adoptará um Programa de Formação e Redistribuição do Rendimento, a fim de criar condições que possibilitem uma maior inclusão social dos membros do MPLA. Pensará por isso utilizar de forma articulada e convergente os principais instrumentos de política de redistribuição do rendimento, tais como a Política Tributária e a Despesa Pública, em sectores sociais e segurança social, visando uma repartição mais justa da riqueza e do rendimento e um nível de bem-estar mais elevado… entre os seus.
A pobreza no nosso país é superável. A crise que atravessamos deve constituir para nós uma oportunidade para traçarmos os melhores caminhos que nos levem a rumar para um crescimento económico sustentável. Os angolanos podem resolver em poucos anos muitos dos seus problemas. O importante é que haja empenho efectivo para se ultrapassar os actuais problemas e para não se voltar a cometer os erros do passado.
O Presidente da República do MPLA apela aos seus angolanos para serem optimistas, perante as actuais dificuldades, afirmando que estamos habituados a lutar contra as adversidades e a ultrapassar obstáculos. Temos de continuar a confiar nas nossas forças e a trabalhar juntos para vencer a crise económica e financeira, no curto prazo.
Recordando a anterior prima do mestre-de-obras
Em 2018, discursando sobre o estado da (mesma) Nação, que marcou no dia 15 de Outubro a abertura solene dos trabalhos da segunda sessão legislativa da IV Legislatura da Assembleia Nacional, João Lourenço apelou ao investimento no sector agrícola, lembrando as vantagens para o desenvolvimento económico de Angola fora da esfera petrolífera.
No quadro do Programa de Desenvolvimento Nacional (PDN) 2018/2022, com grande parte dos financiamentos disponíveis, João Lourenço lembrou as oportunidades da exploração agrícola existentes no país, sobretudo nas zonas rurais, salientando que a aposta iria também ajudar no combate à pobreza e à criação de emprego, garantindo, paralelamente, melhor qualidade de vida às populações.
Foi bom ouvir o Presidente. Foi mesmo elucidativo e pedagógico. É que ninguém sabia que a agricultura ajuda no combate à pobreza, na criação de emprego e na melhoria da qualidade de vida das populações.
Nesse sentido, João Lourenço lembrou que estavam em curso programas integrados de desenvolvimento local, que, a par de reformas no plano social e educacional, trariam benefícios a médio e longo prazos para as populações mais desfavorecidas.
Na educação, o Presidente destacou os esforços do seu executivo na criação de condições para melhorar o ensino, quer através da aprovação do Estatuto da Carreira Docente, quer no estabelecimento das novas regras de procedimento para 20 mil novos professores, quer ainda na construção de novas escolas e na recuperação de outras, para melhorar o rácio professores/alunos e o nível de ensino.
Que maravilha. Quanto não vale ter um Titular do Poder Executivo que tem a capacidade de nos indicar o caminho do paraíso. Ou será que ele julga que somos todos matumbos? Não. Nem pensar. Ele estava mesmo a dizer-nos que o anterior “escolhido de Deus” abriu o caminho para que, agora, ele (por ter sido o escolhido) vai abrir a porta do paraíso.
As mesmas medidas estavam a ser tomadas, segundo João Lourenço, no sector da Saúde, em que o Governo aprovou o Regime Jurídico de Enfermagem e da Carreira Médica, estando aberto o concurso para a inserção de 7.000 novos funcionários médicos e de enfermagem, a par dos 33 projectos em 13 províncias que vão permitir construir ou renovar hospitais.
É claro que, sobretudo no campo da saúde mas também na agricultura, é preciso que os angolanos colaborem e perguntem não o que o Governo pode fazer por eles mas, isso sim, o que eles podem fazer pelo Governo. E o que o Povo pode fazer é, necessariamente, morrer sem ficar doente e viver sem comer. Simples.
Na área do ambiente, João Lourenço destacou as novas medidas de protecção da biodiversidade em Angola, nomeadamente as relacionadas com espécies em vias de extinção que, sendo símbolos nacionais, necessitam de ser revitalizadas, como a palanca negra gigante, o elefante, o hipopótamo e o rinoceronte.
Até dá gosto viver num país sob a liderança de alguém que se preocupa com as espécies em risco de extinção. Só por lapso o Presidente não incluiu nesta categoria uma outra espécie que também corre sérios riscos de extinção: os 20 milhões de angolanos pobres ou miseráveis.
Para João Lourenço, a questão da juventude estava também no “centro das preocupações” do Governo, pelo que apelou aos jovens para se concentrarem no estudo, no desporto e no trabalho, aproveitando as novas tecnologias da informação como ferramenta para assegurar o futuro.
Excelente repto aos jovens. Só um Povo culto consegue ser livre e ter capacidade para pensar pela própria cabeça, agir em vez de reagir, pôr o poder das ideias acima das ideias de Poder, pôr a força da razão acima da razão da força. Não seria bem isto que João Lourenço queria dizer, mas…
Na cultura, o Presidente de Angola lembrou estar em curso a revitalização do sector, nomeadamente no reforço da política do livro e da leitura, enquanto, na área da comunicação social, saudou o “maior dinamismo da imprensa, mais próxima das populações”, destacando a legislação que irá permitir a abertura de novos canais de rádio e de televisão no país.
Cá estamos para ver se o Titular do Poder Executivo, através dos seus membros, sempre nos vai dar lições do que é um “jornalismo mais sério, baseado no patriotismo, na ética e na deontológica profissional”, ou se se limitará – com outros protagonistas e roupagens diferentes – à tese de que patriotismo, ética e deontologia são sinónimos exclusivos de MPLA.
Menos assertivo, o Presidente considerou a possibilidade de implementar as autarquias em todo o país, num período de até 10 anos, se bem que a Lei sobre “Organização e Funcionamento das Autarquias Locais” prevê a implementação gradual das autarquias em 15 anos, privilegiando os municípios com maior desenvolvimento sócio-económico. Vamos então com calma, não é Presidente João Lourenço? Devagar, devagarinho, parados e entregues à vontade superior do que Deus, perdão, do que o MPLA quiser.
Segundo o Chefe de Estado, a primeira tendência aponta para a implementação gradual do processo, enquanto a segunda sugere as autarquias em simultâneo. Sobre a segunda, o Presidente disse (e todos sabemos o significa de “disse” no contexto de quem manda no país) que os seus defensores descuram o facto de ser a primeira experiência no país, que tem 164 municípios.
Em relação ao sector da habitação, o chefe de Estado salientou que estava em curso um programa habitacional em todo o país com a construção de 5.414 novas residências, que irão beneficiar quase 36.000 angolanos, nomeadamente nas províncias de Benguela, Bié, Namibe, Uíge e Luanda.
“Mas este não é um negócio para o Estado, mas sim para o sector privado, que tem de sair da letargia em que se encontra”, sublinhou João Lourenço.
Folha 8 com Lusa